Neste post não trago respostas, apenas faço um esforço de reflexão acerca de um problema complexo, e como tal deve ser tratado a partir de contribuições concatenadas de diferentes campos de conhecimento. ESG, discriminação ou aversão a indivíduos pertencentes a determinados grupos étnicos, promoção da resiliência da população, mudanças climáticas, envelhecimento da população, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre outros tópicos de elevado interesse nos últimos anos merecem reflexão e atenção das comunidades acadêmica e de negócios, tendo em vista o poder de influenciar o bem-estar das pessoas ao redor do mundo.

Em especial, a questão da equidade e da paridade étnica parece merecedora de receber especial atenção. As formas segundo as quais a equidade étnica se apresenta incluem aspectos como: riqueza econômica (veja Schmall & Wolkowitz, 2016), saúde (veja National Center for Health Statistics, 2016) e carreira (veja Deloitte and the Alliance for Board Diversity, 2017). E, essencialmente três eixos de ação parecem interessar ao ambiente de negócios: educação (veja U.S. Department of Education Office for Civil Rights, 2014), infraestrutura (veja Bullard 2005), e justiça (veja Gross, 2017).

Não parece trivial a visão de que equidade étnico racial possa constituir fonte de vantagem competitiva para a companhia. Ao mesmo tempo, um crescente número de empresas tem dispensado esforço para identificar fontes de promoção da competitividade a partir das questões relacionadas ao racismo ou discriminação em decorrência aspectos étnicos. Desse modo, crescimento e rentabilidade têm sido alvo das iniciativas corporativas nessa área, por meio de desenvolvimento das relações das empresas com seus stakeholders relevantes, como empregados, clientes e grupos étnicos. Existe relativo consenso ao redor da premissa de que inequidade étnica é resultado de disfunções estruturais do tecido social, incluindo sistema econômico, aspectos culturais, políticos e instituições, conforme o Center for Study of Race and Ethnicity in America (2015).

O chamado preconceito étnico estrutural funciona cumulativamente e produz resultados expressivamente adversos para pessoas de diversas etnias em áreas como saúde, riqueza, carreira, educação, infraestrutura e participação cívica. No contexto dos Estados Unidos verifica-se, por exemplo, que a renda líquida média das famílias consideradas brancas é aproximadamente 13 vezes maior do que famílias consideradas negras, e dez vezes maiores que as latinas. Esta discrepância de riqueza é atribuível não apenas às diferenças nas oportunidades educacionais e de carreira, mas também a fatores como políticas de governo naquele país. À guisa de ilustração: pessoas de cor acabam por viver predominantemente em bairros mais pobres.

Conforme a mídia dos Estados Unidos (Eligon & Gebeloff, 2017), até mesmo famílias negras que ganham ao menos US$100.000/ano acabam sendo mais propensas a viver em bairros mais pobres, comparativamente às famílias classificadas como brancas com renda até US$25.000/ano. A questão da ocupação dos espaços parece também algo relevante no contexto de São Paulo, a maior economia do Brasil. É evidente que se apresenta imperativo entender as diferenças entre diferentes contextos institucionais, não é prudente apenas assumir a realidade de outros países como uma proxy do contexto brasileiro. É necessária a produção de conhecimento de qualidade e tecnicamente crível, livre de paixões.

O impacto persistente de disparidades desse tipo, combinado com outras desigualdades, como: escolas com baixo desempenho, acesso precário ao transporte público, empréstimos predatórios concedidos por diferentes agentes financeiros (até mesmo aqueles proibidos por lei, como é o caso de agiotas, discutidos por Braun Santos et al. 2018) e o impacto profundamente desproporcional de nosso sistema de justiça criminal em última análise, excluiu as pessoas socialmente vulneráveis, que acabam sendo aquelas pertencentes a determinados grupos étnicos no Brasil, contexto discutido por Heringer (2002). Ao mesmo tempo, há uma mudança demográfica dramática em pleno movimento, exigindo a atenção das empresas, cabendo aos gestores dedicar atenção a esse fenômeno.

A taxa de natalidade e de mortalidade não se apresenta idêntica entre grupos étnicos e sociais, e isto tem induzido aspectos particularmente importantes para o processo de transição demográfica ao redor do mundo. A Suécia, por exemplo, passa por um processo de explosão da parcela de habitantes oriundos de países de religião muçulmana, e isto tem ocasionado uma forte transformação do ambiente institucional daquele país. Esses novos habitantes da Suécia já estão mirando ocupar lugar no poder político nacional, conforme relata Vanttinen (2021).

A interação entre diversidade crescente com exclusão econômica racial persistente constitui o principal desafio que as empresas brasileiras devem enfrentar para competir agora e no futuro próximo. Os ganhos potenciais são consideráveis. No contexto dos Estados Unidos o PIB poderia ser 14%, US$ 2 trilhões mais alto, se a disparidade salarial entre funcionários brancos e funcionários negros for eliminada. O poder de compra dos negros e latinos naquele país aumentou consistentemente desde 1990 e 2018, é estimado em US $ 1,3 trilhão e US$ 1,6 trilhão, respectivamente, conforme o relatório Progress 2050 (2015).

O cidadão brasileiro, nos diferentes países ao redor do mundo, costuma não encontrar maiores dificuldades para ser recebido com relativa simpatia, essencialmente pela imagem de país amistoso e diverso que o Brasil acaba carregando. Uma proxy disto é a posição ocupada pelo passaporte brasileiro no Henley Passport Index, um dos 20 mais valiosos do mercado, sendo o passaporte japonês o líder dessa lista, mesmo sendo o Japão um dos cerca de 50 países do mundo que não permite que uma pessoa tenha mais de uma nacionalidade.

A pandemia de Covid-19 acelerou o trânsito de pessoas no mercado de trabalho, principalmente por esse motivo, ter um segundo passaporte passou a ser algo frequente tendo em vista a manutenção da liberdade para viajar a qualquer lugar, conforme Ledsom (2021) discute em recente matéria publicada na Forbes. Há quem argumente ainda que em decorrência da considerável diversidade étnica encontrada no Brasil, o passaporte brasileiro acaba sendo cobiçado pelo crime organizado. No início dos anos 2000, a mídia brasileira noticiava que a máfia italiana pagava US$10.000/passaporte brasileiro (Globo.com, 2001).

Pesquisadores presumem que as oportunidades de criar valor compartilhado por meio da promoção da equidade racial ocorrem ao longo da cadeia de valor de uma empresa – desde a contratação, treinamento e promoção de funcionários até aquisições, design de produto e marketing, incluindo até mesmo a propriedade da empresa e estrutura de governança e seu lobby e filantropia. Conforme Michael Porter e Mark Kramer definem o conceito de valor compartilhado em seu trabalho publicado na Harvard Business em 2011 “Creating Shared Value”, as empresas podem cri ar valor compartilhado em três níveis. Cada um desses três níveis oferece oportunidades para melhorar o desempenho econômico de uma empresa, promovendo a equidade étnica:

1. Reconceituando produtos e mercados: atendendo melhor aos mercados existentes ou acessando novos com o desenvolvimento de produtos e serviços inovadores que reduzem as desigualdades e atendem às necessidades das pessoas de cor. A esse respeito, o PayPal utiliza formas alternativas de avaliação de crédito em operações de empréstimo para Capital de Giro, eliminando fatores tradicionalmente influenciados pela raça. Até o momento, esse programa do PayPal já desembolsou US $ 3 bilhões para 115.000 clientes. 25% de seus empréstimos foram em condados carentes de crédito que são predominantemente comunidades negras.

2. Redefinindo a produtividade na cadeia de valor: Reduzindo custos, aumentando a qualidade e melhorando a produtividade por meio das operações de uma empresa, promovendo a equidade racial. A esse respeito, A Gap Inc. criou um canal de talentos com o dobro das taxas médias de retenção, fornecendo um curso para treinamento de habilidades e um programa de estágio de 10 semanas por meio do programa This Way Ahead. Noventa e oito por cento dos participantes são pessoas classificadas como de cor nos Estados Unidos.

3. Fortalecendo e consolidando o ambiente de negócios: Nutrir uma base confiável de capital humano qualificado e fornecedores externos, aumentando a demanda do consumidor e melhorando a estrutura regulatória, criando oportunidades para comunidades de cor. A título de ilustração, no mercado de seguros, a Prudential usou seu braço de lobby para trabalhar com uma coalizão de organizações para aprovar nos Estados Unidos uma legislação que se propõe a ajudar pequenas empresas a inscrever trabalhadores qualificados em planos de aposentadoria, aumentando assim o acesso à aposentadoria economia para pessoas negras ao criar um novo mercado para a Prudential e seu setor.

Um exemplo de diferença entre preferências para a indústria farmacêutica

A pandemia de Covid-19 acirrou a disputa na indústria farmacêutica, já tradicionalmente conhecida pelo nível de hipercompetitividade. Ocorre que, em linha com a perspectiva de que é necessário considerar comportamentos individuais no desenvolvimento de novos produtos, verifica-se diferenças entre indivíduos do sexo masculino e feminino, conforme dados inéditos que coletei na cidade de São Paulo, com 1.200 indivíduos (Figura 1).

Figura 1. Risco percebido no consumo de medicamentos. N = 1.200

Fonte: Elaborado pelo autor com base em dados coletados na cidade de São Paulo.

Suspeita-se que o aspecto étnico também seja importante para entender riscos e benefícios percebidos em determinados produtos, conforme destacam Finucane et al. (2000). Esses pesquisadores utilizam o termo White-Male Effect para referir-se à disposição ao risco por parte de indivíduos masculinos de etnias brancas. A Figura 2 apresenta os benefícios percebidos por indivíduos masculinos e femininos no consumo de medicamentos, algo que pode ser útil para reconceituar produtos e mercados na indústria.

Figura 2. Benefício percebido no consumo de medicamentos. N = 1.200

Fonte: Elaborado pelo autor com base em dados coletados na cidade de São Paulo.

É necessário saber o aquilo não sabemos, mas que devemos saber acerca do tema

A Figura 3 mostra que em 2018 o Brasil tinha aproximadamente 19,2 milhões de pessoas que se declararam pretas – 4,7 milhões a mais que em 2012, o que corresponde a uma alta de 32,2% no período. É o que revela um levantamento divulgado maio de 2019, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Figura 3. Evolução da população brasileira que se declara preta (2012-2018, em milhares)

Fonte: IBGE (2018).

O interesse em diferenças intra e inter grupos étnicos pode ser notadas em diversos campos do conhecimento. Em especial, no campo econômico podem estar as principais contribuições para promoção da paridade e da equidade étnica, conforme realçam Roy et al. (2021) e Schwab e Zahidi (2020). No contexto brasileiro, o Observatório de Educação Ensino Médio e Gestão, do Instituto Unibanco, destaca o seguinte quadro: De caráter estrutural e sistêmico, a desigualdade entre brancos e negros na sociedade brasileira é inquestionável e persiste com a fragilidade de políticas públicas para o seu enfrentamento. Negros representam 75,2% do grupo formado pelos 10% mais pobres do país (IBGE, 2019).

É necessário que dados confiáveis sejam construídos e distribuídos, para que a comunidade científica em diversos campos do conhecimento possa produzir conhecimento relevante e tecnicamente suportado. Para refletir acerca do futuro, é imperativo entender o passado. Nesse sentido, conforme dados publicados pelo IBGE, em 2004, São Paulo refletia um quadro que merecia atenção à questão da inequidade étnica. Se observarmos a taxa de natalidade é razoável assumir que a parcela da população negra era maior, também apresentando indicadores maiores para mortalidade. Se assumirmos que o sentimento de pertença possa induzir que mais indivíduos se declarem como negros, tendo em vista os recentemente movimentos dirigidos à promoção da equidade, certamente a população negra deve seguir crescendo.

Se por um lado pode ser verdade que há uma agenda de trabalho na promoção da equidade étnica no Brasil, por outro lado devemos estar cônscios de que o nosso país tem a sua própria história, seus próprios problemas. Não parece prudente assumir quaisquer caminhos que possam soar reducionistas de algo complexo construído ao longo de séculos, como o preconceito étnico (não apenas contra indivíduos negros) no nosso país. É necessário construir conhecimento de qualidade, capaz de viabilizar inteligência de gestão para as esferas pública e privada. Esse processo inicia-se com formação de recursos humanos, e produção de dados de boa qualidade. Temos um trabalho a ser feito!

Referências 

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Braun Santos, D., Mendes-Da-Silva, W., Farias, L.E.G. (2018). Deficit de Alfabetização Financeira Induz ao Uso de Empréstimos em Mercados Informais. Revista de Administração de Empresas, 58, 44-59, 2018. https://doi.org/10.1590/S0034-759020180105

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